quinta-feira, 27 de novembro de 2008

100 anos de imigração | O imigrante e Sensei de Judô Sukeji Shibayama


100 anos de imigração | O imigrante e sensei de judô Sukeji Shibayama – I


Ainda pré-adolescente, 14 anos, fui a convite de um primo, conhecer a Academia de Judô Kenshin. Funcionava ali na Rua da Estação, em Osasco, nos fundos do Colégio Ceneart onde estudávamos. Instalações simples, rústicas, localizava-se nos fundos de antigas construções. Ali chegava-se por uma entrada estreita, escura. 
Conheci Sensei Shibayama, o fundador da academia. Magro, de corpo pequeno, a barba de alguns dias, chinelo de tiras de borracha, fala mansa, pausada, de conversa interessante. Neófito no judô, imaginava existir algum exagero na queda do discípulo que sensei convidava para demonstrar a técnica dos golpes.
No início e ao final dos treinos, fazia uma pequena oração em silêncio, com todos os judocas sentados. Costumava falar por não mais que cinco minutos, começando por elogiar sempre o empenho e a dedicação dos atletas e nos alimentar com dizeres sábios, aprendidos no despertar espiritual durante longos anos da prática do judô. Dizia que devíamos agradecer antes e depois da luta, pois era graças ao nosso oponente que aprimorávamos nosso judô. Sempre nos pediu gratidão e respeito aos seus faixas pretas e ao tatami, nosso local do treino. Pedia que não nos esquecêssemos de cumprimentar nossos professores na rua, nossos familiares ao acordar e ao dormir. Dizia que não era grave esquecer de cumprimentá-lo, mas que ele se entristeceria se algum judoca não mostrasse boa educação e cordialidade aos professores da escola.
Humilde, sábio, demonstrava extremo respeito aos seus judocas. Quando falava para todos, nunca usava o pronome “vocês”, mas sempre, “senhores”. Todo adolescente para ele já era “senhor”, “senhora”. Tinha dificuldade em chamar uma criança por “você”. Nunca o ouvi gargalhar. Seu riso era contido, comedido, como convém a um japonês. Sempre sereno, dono de si, nunca o vi bravo, nem eufórico. Mas já o vi chorar. Confessou-me ter falhado como orientador e professor de judô e, num momento de fraqueza, expulsou um discípulo seu, já faixa preta, confidenciou envergonhado. Consolei-o dizendo que um mestre precisava ter pulso firme; um faixa preta já não era criança e, se o discípulo não se encaixava nos seus padrões de respeito, cuidado e dedicação aos colegas de tatami, que ele, sensei, precisava depurar a academia, evitando as más influências sobre seus demais discípulos. Disse-lhe que se caísse o padrão da Academia Kenshin, ele era o único responsável. Sensei mostrou-se aliviado. Na verdade, acho que sensei sabia ter agido certo, mas fato tão contrário ao seu método educacional, e ao seu próprio espírito sereno, pacífico e respeitador, certamente causava-lhe algum constrangimento que precisava de apoio moral.
Alguns meses de academia, já com alguma confiança na habilidade e força dos meus braços e pernas, pela primeira vez treinei com sensei Shibayama. Me chamou para treinarmos golpe de chão (newaza). Deitou-se e pediu que eu o atacasse como soubesse, com qualquer golpe. Fiquei com receio de machucar aquele senhor franzino deitado à minha frente, pois ele nunca havia lutado comigo e certamente não conhecia minha força de jovem. Entrei delicadamente, quase pedindo licença para segurar a gola do seu quimono. Sensei então pediu que eu lutasse como se estivesse numa competição, com força, com vontade, que aplicasse qualquer golpe mesmo os shimei (estrangulamento), que não tivesse receio de machucá-lo. Estrangulamento? E se eu o enforcasse? Ele poderia desmaiar, talvez até morrer. Decidi então que não o machucaria, mas que seguraria com rapidez e energicamente a gola do seu quimono para ele ver que eu era forte, capaz e rápido. Mas, desta vez, a gola do quimono sempre se afastava quando estava perto de pegá-lo. Na verdade, minhas mãos não estavam conseguindo nem chegar no tórax do mestre. Após algumas tentativas infrutíferas, sensei me disse: “Kaneoya-san, no judô tem que enxergar o golpe antes que ele nasça”. Entendi que ele estudou meus movimentos de aproximação e neutralizou-os todos no nascedouro. Aprendi a primeira e grande lição daquele saudoso orientador: resolver os problemas antes que eles nasçam, senão, eles me golpearão na vida. Não seria daquela vez que sensei experimentaria minha habilidade de judoca; mas meu espírito de menino havia encontrado um grande mestre nas palavras daquele grande judoísta.

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Fonte: http://www.nipocultura.com.br

100 anos de imigração | O imigrante e sensei de judô Sukeji Shibayama – II


Algumas vezes Sensei Shibayama me chamou para demonstrar golpes. Já havia treinado com vários faixas pretas e marrons. Acho que só um judoca consegue entender o que vou dizer. Há golpes que são aplicados com dificuldade, conseguimos opor resistência e, muitas vezes, na brecha, conseguimos aplicar com sucesso algum contra-golpe. Mas os golpes de Sensei Shibayama eram golpes de mestre. Suaves, rápidos, milimétricos, precisos, não possibilitavam contra-golpes. Eram aplicados com profundo respeito e humildade, quase se desculpando por nos haver derrubado. Ficava emocionado ao sentir a queda. Embora rápido e forte o golpe, e minha queda rápida, era sempre suave, prazerosa, meu braço oposto à queda sempre seguro pelo mestre, talvez querendo suavizar o arremesso e chamar para si responsabilidade por alguma eventual dor infligida. Sempre dava um pequeno toque no meu ombro após a demonstração, num inconfundível gesto de agradecimento e humildade. Havia vontade de se ensinar o judô, mas sobretudo amor e respeito naqueles movimentos. Eram gestos simples mas que tinham a magia de me causar profundo bem estar e paz espiritual. Quem lutou com sensei, certamente sabe o que eu sentia.
Pouco tempo depois, deixei o judô para estudar e lecionar o idioma japonês. O tempo passou e um dia o destino quis que eu estivesse falando no microfone da Rádio Difusora Oeste de Osasco, apresentando um programa de variedades para a comunidade nipônica. Lembrei-me da sabedoria do mestre de judô e quis levá-lo para uma entrevista. Sensei recusou dizendo que ele não era pessoa tão importante que merecesse estar num veículo de comunicação. Cedeu quando lhe disse que boas palavras melhoram o mundo e as pessoas, mas “aquele que tem boas sementes e não semeia, faz o mesmo papel daquele que nada semeia”. Disse-lhe que enriqueceríamos a vida das pessoas com seu exemplo de vida e suas palavras. Eu o entrevistei por uma hora.

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100 anos de imigração | O imigrante e sensei de judô Sukeji Shibayama – III

Agora pai, levei meus filhos para treinar judô na mesma academia. Sensei me recebeu com alegria. Contou-me a história da academia desde que eu havia me ausentado. Enquanto as crianças treinavam, conversávamos. Quase sempre assuntos filosóficos, o de que mais gostava e a sua estreita relação com o judô.
Foi aluno de Kyuzo Mifune, considerado o melhor aluno de Jigoro Kano, fundador do judô. Ao abrir as portas para o ocidente a partir da Reforma Meiji em 1868, o Japão recebeu inúmeros estrangeiros que vieram para negociar ou lecionar nas universidades japonesas, então ignorantes nos conhecimentos ocidentais. Norte-americanos se interessaram pela nova arte marcial que estava surgindo e convidaram Jigoro Kano para ensinar judô nos EUA. O fundador enviou então Mifune e mais um aluno. Mas, chegando lá, despertaram pouca atenção. O tempo foi passando e o dinheiro acabando. Mas quando acabava, o aluno sempre aparecia com algum. Curioso, um dia Mifune foi ver onde o aluno conseguia dinheiro. O rapaz participava de lutas de rua em que se oferecia dinheiro ao vencedor.
Mifune resolveu que aquele não era o método adequado à sua missão e não era certamente a vontade do sensei Jigoro. Fez então um desafio. Acendeu dez velas e desafiou os presentes a apagá-las com um só movimento sem tocar nelas. Ninguém conseguia. Ao final, Mifune, pequeno e magro para os padrões norte-americanos, descalço, apagava todas com um único movimento de um pé. No judô, este golpe chama-se ashibarai (varrer com os pés). É fato que não consta nos livros da História do Judô. Foi contada pelo mestre Mifune ao seu aluno Shibayama e este o contou para mim. Engraçada e folclórica, mas foi como o judô entrou nos EUA.
Quando ia assistir aos treinos, quase sempre pedia, ao final, que eu subisse no tatami para traduzir aos judocas sua pequena preleção. Sensei era inteligente. Havia se diplomado em língua chinesa numa faculdade do Japão. Respeitoso, acho que me chamava mais em consideração à minha presença do que propriamente pela sua insuficiência com o idioma. Todos entendiam perfeitamente seu português. Me chamava de senhor e de  Kaneoya-sensei, à mim que não passei da faixa vermelha e não treinei mais que dois anos de judô.
Sensei Shibayama nos deixou em 4 de julho de 1999 aos 88 anos.
Havia deixado um único filho biológico, Américo, meu colega de ginásio, que faleceu antes dele. Mas deixou inúmeros filhos de Academia. Alguns não lutam mais judô, mas certamente se sentem felizes por haverem conhecido este grande mestre judoísta que nos deixou profundas lições de vida.
Quem foi judoca, nunca deixará de sê-lo. Sai-se do judô, mas o judô não sai de nós. Estou certo de que os ensinamentos do sensei Shibayama moldaram marcantemente o caráter de muitas crianças, jovens e adultos que hoje mostram a influência dos ensinamentos daquele sábio senhor em suas vidas. Centenas, talvez milhares de alunos passaram pela Academia nestes 61 anos de existência.
Estou certo de que os atuais mestres elevam o nome da Academia Kenshin ao formarem não apenas o atleta, mas o ser humano sob os ensinamentos do sensei Shibayama, calcados no respeito, amor, benevolência, disciplina e dedicação ao próximo. São pessoas que acreditam na excelência do ser humano e engrandecem o patrimônio espiritual do homem pela prática do judô.
À mim, sensei não ensinou apenas judô. O mais importante, ensinou-me como fazem os grandes mestres: sem palavras, pelo exemplo, mostrando-me seu amor e respeito ao próximo, aos discípulos e à academia.
Quando visito a Academia, vejo na parede seu retrato, sentado, olhar sereno, de faixa coral.
Como diria Drummond, ao final do poema Confidência do Itabirano, “mas como dói!”













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